Por Claudia Mastrange
A Lei Maria da Penha completou 15 anos em vigor, no último dia 7 de agosto e sua criação significou um grande avanço nas políticas e práticas de proteção à mulher. Mais ainda temos muito o que avançar. O Brasil a ocupa o 5º lugar no ranking mundial de violência contra as mulheres, e esses dados se tornaram mais preocupantes durante a pandemia da covid-19. Em 2020, o número de feminicídios aumentou até 400% no país, segundo dados da Agência Senado.
O Anuário Brasileiro de Segurança Pública mostra que os assassinatos de mulheres registrados como feminicídio passaram de 929, em 2016, para 1.350, em 2020. Além disso, quase 15% dos homicídios de mulheres no ano passado praticados por parceiros ou ex-parceiros das vítimas não foram registrados como feminicídio.
Diante dessa realidade, depoimentos como a da cantora Pocah, que falou sobre as agressões que sofreu de um ex-companheiro enquanto estrava grávida, durante o programa Papo de Segunda, no canal GNT, causam impacto e são importantíssimos. Porque o agressor não escolhe status social, cor da pele, idade ou religião: pode acontecer com qualquer mulher. Como bem declarou a delegada Sandra Ornellas, da Polícia Civil do Rio, ele pode ser o vizinho ‘homem de bem’ que te dá bom dia pela manhã.
Pocah declarou que viveu muitos anos com seu agressor. “Comecei a namorar muito nova. Esse relacionamento completamente conturbado, era infernal pra mim e pra quem estivesse ao meu redor”, lembrou, relatando que o abuso começou com gritos, tentativa de controlar suas roupas, afastá-la dos amigos… “Começa assim, e você tem que se atentar aos sinais. Isso são sinais. Relacionamento,muitas vezes você tem que ceder, mas quando infringe os seus direitos… É muito difícil falar disso. Você não tem que deixar de ser quem você é pra agradar outra pessoa”, disse.
A cantora contou que o perdoou duas, três vezes e não conseguia por um ponto final, com medo das muitas ameaças. “Havia agressões físicas, verbais e psicológicas, manipulação até do meu temor a Deus. Dizia que o diabo testando nossa relação. Em uma das surras quase fiquei cega do olho esquerdo. Eu sangrava e a mãe dele não queria deixar me levarem para o hospital, porque então ele seria preso. Uma mulher fazendo isso…”, revelou. “Tinha medo de morrer em diversos momentos em meio a essas brigas, achei que eu fosse morrer. A sensação que eu tinha é que eu já estava morrendo…”.
Ela fez uma única denúncia à polícia, mas a investigação não teve continuidade. A virada de chave só viria após o nascimento da filha. “Até ela nascer, era terrível, chute, fui parar no hospital. Quando ela nasceu, eu falei: “ tenho que mudar isso. Eu não admito mais manter isso aqui ou eu vou morrer e a minha filha depende de mim, não posso deixar minha filha na mão desse cara'”, disse ressaltando que fez questão de falar sobre o assunto porque também se inspirou no relato de outras mulheres para sair da situação em que se encontrava.
Pocah sublinhou a importância da Lei Maria da Penha e de se denunciar. “A Lei é uma das principais do mundo sobre a violência contra a mulher. Eu não tive a mesma oportunidade. Na época, eu poderia ter lutado mais. Eu desisti muito fácil. Então eu sou a favor de denunciar. Não foi escutada o suficiente? Vai pra internet, posta, tira foto, joga na internet porque assim vai tomar uma proporção maior. Sou a favor de expor mesmo, não ter pena. Porque na hora de te bater, te silenciar, ninguém teve pena”.
E finalizou: “Eu tenho uma filha mulher e não quero nunca que ela passe um terço da humilhação que eu passei. A minha luta é por mim, pela minha filha, por todas as mulheres que sofrem, são silenciadas, abusadas, que têm sua liberdade privada. Essa é minha luta diária. Não é pra me olharem, ai que coitadinha. Não, eu sou uma mulher foda, sou incrível e eu consegui vencer isso. Achei que ia morrer diversas vezes, mas eu tô aqui. Se eu consegui, você também pode”.
Ronda Maria da Penha: acolhimento às vítimas
Desde março deste ano, a Secretaria Municipal de Ordem Pública (Seop) e a Guarda Municipal do Rio (GM-Rio) contam com um projeto exclusivo para combater a violência contra a mulher e o feminicídio: a Ronda Maria da Penha. A iniciativa e está se consolidando como um elo forte na rede de combate à violência contra a mulher no município.
Em quatro meses de atuação, de março a julho de 2021, a Ronda já realizou 1.451 acolhimentos, duas prisões, 15 intervenções relacionadas ao descumprimento de medida protetiva e 14 auxílios às ações de outros órgãos públicos. São mais de 260 mulheres assistidas, que recebem um acolhimento humanizado, por meio de visitas domiciliares ou por telefone.
“A Guarda Municipal sempre foi uma instituição que atuou no combate a violência contra a mulher, na rotina operacional dos guardas nas ruas, em casos de flagrantes. Com a criação da Ronda , estamos atuando de forma mais decisiva, cooperando inclusive para que as mulheres vítimas possam retomar suas atividades se sentindo seguras“, destaca o comandante da GM-Rio, inspetor geral José Ricardo Soares. “Nosso trabalho tem ajudado a consolidar o rompimento desse ciclo de violência e ajuda a essas mulheres a viverem uma vida digna e livre de violência”, destaca a líder operacional Glória Maria Bastos, coordenadora da Ronda Maria da Penha da GM-Rio.
O trabalho é realizado em parceria com o Tribunal de Justiça do Rio (TJRJ) e conta com 31 guardas municipais e apoio de quatro viaturas adesivadas com faixas na cor lilás e a logomarca do programa. Os agentes capacitados atuam na verificação do cumprimento de medidas protetivas deferidas pelos juizados de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Capital.
Os patrulheiros realizam os atendimentos com três agentes, sempre tendo, pelo menos, uma guarda feminina na equipe. A principal missão exercida pelos patrulheiros da ronda é a verificação do cumprimento das medidas protetivas, criadas para coibir atos de violência doméstica e familiar.
Após receber a notificação do Juizado de Violência Doméstica e Familiar contra a Mulher da Capital, guardas municipais vão até a residência da mulher que teve a medida deferida para verificar se está sendo cumprida pelo agressor. Não se aproximar da vítima, não manter contato ou não frequentar determinados lugares estão entre as medidas protetivas mais utilizadas para evitar a repetição da violência contra a mulher.
Campanha e rede de apoio
As mulheres que estejam passando por uma situação de violência, ainda que sutil, podem contar com uma série de serviços de apoio psicossocial e jurídico, mesmo aquelas que ainda não se sintam preparadas para denunciar.
No Rio, as mulheres podem procurar o Centro Especializado de Atendimento à Mulher – Chiquinha Gonzaga. Além da Ronda Maria da Penha, da GM, a cidade conta ainda com a Casa Viva Mulher Cora Coralina, um abrigo sigiloso para as mulheres em situação de violência extrema.
“Queremos lembrar que nenhuma mulher está sozinha e, cada vez mais, fortalecer e ampliar nossos serviços para que as mulheres tenham as ferramentas necessárias, sejam elas emocionais, sociais ou econômicas para romper com o ciclo da violência” afirma a secretária de Políticas e Promoção da Mulher, Joyce Trindade.
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“Na prática, as mulheres encontram muitas dificuldades”
Vítima de violência por parte do ex-marido, a atriz Cristiane Machado sobreviveu e botou a boca no trombone. Seu caso foi parar na imprensa e hoje, ela se dedica a ajudar outras mulheres. “Ainda somos o quinto país do mundo em ranking de violência contra a mulher. A Lei Maria da Penha veio para tentar diminuir essa realidade. Ela engloba a violência psicológica, patrimonial, moral, física e sexual. Geralmente, as mulheres vivem dois ou três tipos de violência. Nesse momento de fragilidade, elas precisam de um direcionamento. A lei tenta resguardar a integridade física e psicológica. A lei é completa, elaborada e cada vez mais falamos disso. Mas, na prática, as mulheres encontram muitas dificuldades para trazer tudo que está na lei para a realidade, sem tanto sofrimento, enfrentamento.”, comenta.
Para as mulheres que sofreram agressão, Cristiane recomenda que seja feito o registro em delegacia. “Depois é preciso ir ao IML fazer o exame de corpo e delito, que é essencial, pois ele comprova as lesões, e é o órgão de perícia oficial judicial”, ressalta. Daí pra frente seque-se a investigação e, em paralelo, se for o caso, a solicitação das medidas protetivas.
“Hoje, a ação de violência doméstica, é uma ação pública incondicionada, ou seja, não é mais existente pela vontade da mulher e, sim, do Ministério Público. Isso aconteceu porque, infelizmente, muitas mulheres desistiam por medo do agressor ou por acreditar em uma mudança. Atualmente, se após as investigações da polícia, for constatado que ocorreu o crime, quem dá início à ação, é o próprio Ministério Público, mesmo que a mulher desista, a ação continua. O Ministério Público dá continuidade”.
Origem da Lei Maria da Penha
O nome da lei homenageia Maria da Penha, que sofreu tentativa de feminicídio em 1983, ficando paraplégica. Até 1998, o agressor de Maria da Penha continuava em liberdade, e o caso ganhou repercussão internacional e foi denunciado à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA).
Em 2001, a OEA responsabilizou o Estado brasileiro por negligência, omissão e tolerância em relação à violência doméstica praticada contra as mulheres brasileiras.
A OEA recomendou não apenas que o Brasil desse seguimento à devida punição do agressor de Maria da Penha, como prosseguisse com uma reforma que evitasse a tolerância estatal nesses casos.
Diante da falta de medidas legais e ações efetivas, em 2002 foi formado um consórcio de organizações não governamentais (ONGs) feministas que elaborou a primeira versão de uma lei de combate à violência doméstica contra a mulher. Em 2006, após muita discussão na Câmara e no Senado, a lei foi aprovada pelos parlamentares.
ONDE BUSCAR AJUDA
Rio de Janeiro – Centro Especializado de Atendimento à Mulher Chiquinha Gonzaga
Rua Benedito Hipólito, 125 – Centro. Telefones: 21 2517-2726 / 21 98555-2151 (whatsapp). E-mail: ceam.spmrio@gmail.com Para mais serviço, acesse o 1746
Niterói – Centro Especializado de Atendimento à Mulher Neuza Santos
Rua Cônsul Francisco Cruz, 49, Centro. Telefones: 21 96992-6557 / 21 2719-3047 (whatsapp). Codim: 21 98321-0548
Maricá – Casa da Mulher Heloneida Studart. Centro Especializado em Atendimento às Mulheres – Natália Coutinho Fernandes
Rua Pereira Neves, 274 – Centro. Telefones: 3731-5636 / 97602-3243 (WhatsApp). E-mail: casadamulhermarica@gmail.com
Fotos: Filipe Lisboa, Reprodução, Prefeitura do Rio e Agência Brasil