Por Claudia Mastrange
Da infância pobre em São Luís do maranhão a herói nacional. Não é à toa que o ator Deo Garcez tem orgulho de sua trajetória. Aos 11 anos já sonhava em se tornar ator. Pois lá se vão mais de 40 anos de uma respeitável trajetória artística e muita história para contar. Representatividade também o define, já que procura sempre abordar a temática do racismo em seus trabalhos e há 6 anos encena ‘Luiz Gama ─ Uma Voz pela Liberdade’. O espetáculo conta a trajetória do ex-escravo, jornalista, poeta, político, advogado autodidata que foi responsável pela libertação de mais de 500 escravos.
Agora o abolicionista estará, em novembro, na novela Nos Tempos do Imperador. Deo também acaba de rodar o filme O Lobisomem de Pedra de Fogo, com estreia prevista para novembro. Em entrevista À Mais Rio de Janeiro, ele fala de preconceito, de como se reinventou na pandemia, do sucesso de Luiz Gama e muito mais.
Que centelha te moveu a escrever o texto de Luiz Gama e tocar esse projeto…
Sempre fui muito inconformado com qualquer tipo de injustiça . E a questão da escravidão, do regime escravocrata sempre bateu forte em mim. Ate hoje tenho recortes de jornais e revistas sobre isso. Há 28 anos eu tinha descoberto Luiz Gama através de estudos e sugeri para o Ricardo Torres, com quem trabalho há muitos anos, que fizéssemos um espetáculo sobre Luiz Gama. Fiz uma novela da Record, em que fazia o professo Bené, que era o nome do filho do Luiz Gama, que se chama Benedito. Mas a centelha viria mesmo há 6 anos quando um amigo, o advogado Humberto Adami, advogado negro, presidente da Comissão Nacional da Verdade da Escravidão Negra no Brasil, sugeriu que eu escrevesse um texto sobre o Luiz gama, para o teatro. E assim foi. Escrevi, chamei o Ricardo, que me ajudou muito na construção dramatúrgica do texto, veio atriz Nivea Helen, depois a Soraia Arnoni…
Naquela época, a OAB também estava recebendo o Troféu Raça Negra, pois há 15 dias havia feito a reparação histórica nomeando oficialmente o Luiz Gama como advogado. Homenagem póstuma. Fui apresentado ao presidente da OAB pelo dr. Humberto Adami para fazer uma leitura dramatizada sobre o espetáculo, que foi acontecendo algumas vezes até se tornar o espetáculo que é hoje.
Se surpreende com a magnitude que alcançou?
Sim, porque nunca na história do teatro brasileiro um espetáculo consegue recuperar dessa forma grande parte da a história do Brasil, com a trajetória de Luiz gama, que propositalmente não está nos livros de História. A gente recupera através da arte, do teatro. Agradeço também a Lívia Ferreira, doutora em Luiz Gama , com três livros sobre o tema e que foi uma grande referência para a construção da narrativa. E tomou uma proporção muito grande, do público, da crítica, recebi homenagens, como a medalha Pedro Ernesto, que veio por conta da carreira, claro, mas muito por Luiz Gama.
Como é viver na TV esse personagem que há 6 anos vive no teatro?
É maravilhoso, quase indescritível. É o reconhecimento de uma vida dedicada. Faço da arte de interpretar a razão da minha vida, na questão profissional. E ter essa repercussão, a ponto de viver na TV Luiz Gama é fundamental. Dá visibilidade ainda maior a história de Gama, fundamental na luta por Direitos Humanos, em especial no que se refere às pessoas escravizadas. Agradeço à produtora Frida, que viu a peça há uns três anos e agora o trouxe para a novela. É preciso que se conheça, se propague a sua história, não somente para o brasil mas para o mundo inteiro.
O que as pessoas te falam na rua, já te reconhecem por Luiz Gama? O que mais comentam?
Nossa… As pessoas, por mais que eu tenha fama como ator – estive em Xica da Silva e A Escrava Isaura – é impressionante ver como me param na rua por conta do espetáculo, por terem assistido. Falam do quanto é importante falar dessas histórias no teatro. Não só divertir, fazer rir, mas recuperar histórias, temas necessários para serem discutidos pela sociedade.
Acredita que sua carreira se divide em antes e depois de Luz Gama…?
Sim acredito piamente que o Luiz Gama é um divisor de águas na minha carreira, o que coincide com minha maturidade artística e pessoal, como cidadão. Inclusive com relação à consciência no que se refere ao verdadeiro sentido da arte, como forma de buscar uma conscientização, desalienação e politização. Minha carreira é uma antes e depois desse espetáculo. Me defino enquanto ser humano e artista.
Que balanço faz da sua trajetória, do menino pobre de São Luiz ao ator consolidada de hoje?
Sobre o menino pobre de São Luiz, olho para trás e digo: valeu a pena. Faria tudo novamente, no sentido de concretizar meu objetivo desde os 11 anos, de ser ator. Digo que estou no caminho certo, pela repercussão e credibilidade que tenho tido, especialmente de seis anos para cá. Tudo confirma meus ideais do meu sonho de menino. Valeu a pena, vale a pena.
Acha que as pessoas começam a ter um entendimento maior? Vemos alguns cuidados, como se falar em escravizados e não escravos….Mas o que mudou, além do discurso?
Sim, acho que as pessoas estão com uma consciência cada vez maior do que seja direitos humanos, do que foi a questão da escravidão. Os movimentos negros já lutaram muito e não foi em vão. Apesar de detectarmos com facilidade diariamente casos de discriminação, conflitos raciais, matança do povo preto, exclusão. Mas paralelamente há uma consciência que há cerca de 15, 20 anos atrás não havia, como os movimento BLM dos EUA. A morte bárbara do Jorge Floyd foi avassaladora, a ponto de detonar uma outra fase nessa luta e, por tabela, foi para o mundo inteiro; foi forte a ponto de nos atingir aqui. Esta pintando um novo entendimento, no meu ponto de vista. Conceitos, formas de se falar….Utilização de palavras, como ‘a coisa ta preta’, ‘denegrir’…Hoje é combatido. Ficou nas entrelinhas, embutido ali aquele racismo e as pessoas nem se tocavam que ali estavam praticando um ato de preconceito, racismo. Essa resistência nos faz reivindicar direito. Temos discrepâncias como presidente da Fundação Palmares, que foi colocado lá por esse presidente. Alguns são capitães do mato de si mesmo.
As cotas diminuem as distâncias sociais?
Sim. Há também o movimento negro, nas favelas, de resistência com ações afirmativas como a lei das cotas, importantíssima para a inclusão do povo preto nas universidades, no serviço público. Porque o Brasil tem uma dívida com essa população, que após ima libertação, que considero inacabada, pois não tiveram condição de ter moradia, trabalho, saúde e educação descentes.
Mas ainda há o preconceito explícito… Como lidar com isso, ainda mais diante dos números absurdos da violência, casos recorrentes de s racismo, injúria etc ?
É revoltante. Não dá para lidar sem denunciar, colocar em prática a nossa revolta, escrevendo falando, indo para Justiça . Porque racismo é crime inafiançável e quem é criminoso tem que pagar. Temos que gritar, reunindo forças, inclusive no coletivo, cada um em sua casa, sua escola… Eu faço isso através do teatro, da minha arte, da minha fala e consciência enquanto artista e cidadão. Assim espero que cada um faça a seu modo. Para lutarmos contra essa praga, esse tumor que afeta o Brasil e o mundo. Ai teremos um mundo menos desigual e mais justo.
Você pessoalmente sofreu algum episódio de discriminação que possa contar?…Acho que todo negro tem uma história, nem que seja o olhar diferente, o ‘velado’ que dói às vezes mais que o que é explícito né?
Sim. Na escola passei por preconceito racial, mas não tinha consciência. Ficava indignado, mas não sabia o que era… Passava tanto por parte de colegas, quanto de professores. O diretor de um curso de teatro em Brasilia me apontou: “Aquele aluno negro ali…”. Num tom, pejorativo, aquilo doeu, os olhares também… Já aconteceu, pessoa que não me conheciam me olharem de cima a baixo como quem diz: como esse negro esta com essa roupa de marca?’ .Ha diversas formas, tanto declarado como velado… Mas para quem é negro não há nada velado, é explícito. A gente identifica de imediato.. Uma vez entrei com uma mochila e não queriam deixar entrar. Meu amigo sim. Questionamos isso. Para os racistas, a cor da pele determina que você é marginal, criminoso. Isso é absurdo, é morte em vida. A gente morre cada vez que é olhado com discriminação. Pior que acontece de outra forma: a morte vem pelas balas perdidas. Alegam intervenções policiais, mas é matança, externínio .
O povo preto está alcançando mais espaço no mercado? Na arte, na publicidade, nas empresas?
Sim, se comparado há vinte anos, isso é bastante significativo. Houve uma evolução muito grande, mas estamos muito longe de um nível de igualdade. Mais de sessenta por cento da população brasileira é autodeclarada preta, mestiça. E não se vê representada nas camadas da sociedade e no mercado de trabalho, né? Nesse sentido a lei das cotas nas universidades, tem um papel fundamental. Hoje a gente vê aí a quantidade de pessoas negras colocadas no mercado de trabalho, advogados, médicos, juízes. Eu mesmo sou um professor formado numa particular, numa época em que nem existia a cota. Consegui através de bolsa, do crédito educativo. e me formei, fiz o curso de bacharelado em interpretação e licenciatura em artes químicas. E com isso tive o privilégio de ter sido aluno da Ducina de Moraes a figura mais importante do teatro brasileiro no século 20.
As novas gerações estão mais conscientes do seu direito?
Sim, temos tido evoluções a partir dos abolicionistas, dos movimentos negros até aqui né? Ações afirmativas são importantes para isso. Referências no mundo artístico podemos citar, começando pelo meus grandes amigos Milton Gonçalves eAntônio Pitanga, Ruth de Souza, Léa Garcia, Zezé Mota, Abdias do Nascimento, com o pioneiro Teatro Experimental do Negro … A consciência vem a partir da do conhecimento, a partir do estudo. Isso é importante pra gente vir encontrar hoje jovens conscientes do que nós representamos. E dos direitos, inclusive direito à igualdade.
Como educador acredita que também a história do povo preto precisa ser mais abordada nas escolas, inclusive pelo cumprimento da lei 10639 ?
Claro, eu acredito sim, a história do povo preto precisa ser abordada de uma forma efetiva, plena nas nossas escolas, em todas as escolas do Brasil, essa lei cinquenta e nove que foi acho que reformada, né? Reeditada em 2008, incluindo então a partir daí a história dos povos indígenas no Brasil, da contribuição do povo do índio brasileiro para nossa história. A nossa história precisa ser divulgada, precisa ser propagada, precisa que se um Brasil verdadeiramente conheça o próprio Brasil.
Como enxerga o papel da educação hoje no Brasil polarizado e um mundo dominado mais pelo digital, que pelos livros?
Pois é. Nós temos obras maravilhosas, todos precisam conhecer literatura. Machado de Assis, Lima Barreto, Carolina de Jesus, Conceição Evaristo … Luiz Gama era um homem à frente do seu tempo, que foi transgressor melhor sentido, por meio também da literatura, de seu único livro, com artigos, teses de defesa aos escravizados. Foi um revolucionário através da educação.
Como sendo a retomada das atividades, com a da pandemia? Como tem atravessado esse período?
A retomada é necessária e ao mesmo tempo dolorosa. Porque nós fomos os primeiros a parar e estamos tendo os últimos a voltar, e ainda de forma lenta, né? A gente que necessita do público, da presença, nós que somos da cultura… Apesar do lado doloroso, encaro tudo com otimismo. Acredito no dia seguinte, no futuro, sou um idealista. Acredito no sonho e não deixei a peteca cair. Então, eu me reciclei durante essa pandemia. Estudei, revi filmes e não deixei de fazer meu trabalho. Luiz Gama, uma Voz pela Liberdade esteve em três temporadas consecutivas no Teatro Petragold no Rio, a princípio só de forma virtual. Ensaiei e apresentei o espetáculo Anjo Negro, de Nelson Rodrigues, em plataformas virtuais. Enfim, eu procurei me reciclar, né? Inclusive estudando idioma, estudando inglês, importantíssimo pra não esmorecer, não cair em depressão. A gente vai se reerguendo.
Você também gravou a novela Salve-se Quem Puder, na pandemia.
Sim, vivi o médico doutor Emir. Paramos por conta da pandemia, quando foi possível observando os protocolos, a gente a gente voltou a gravar. E agora fui chamado pra fazer Nos Tempos do Imperador, como Luiz Gama e estou gravando a segunda fase da novela , enfim, o sonho tá aí. Eu me sinto um privilegiado, um abençoado.
Como foi se adaptar as novas tecnologias nessa nova era, em que digital chegou até o teatro?
Foi difícil, mas como eu adoro desafios e tratei de me adaptar a essa nova tecnologia… Ensaiei todo Anjo Negro de forma digital do celular, da minha casa em Teresópolis A peça tinha apenas gravadas antecipadamente e os três atores fazíamos o espetáculo de forma online cada um de sua própria casa. Eu sou muito curioso eh com essas mídias todas, eu interajo e já vinha exercitando isso antes. Então, com a pandemia , só cresci nesse campo.
Em que grau é ligado em redes sociais?
Sou ligado em altíssimo grau, posso dizer hoje. Sou viciado em WhatsApp, Instagram e, em terceiro lugar em Facebook. Facebook eu tenho dois e Twitter eu interajo menos. Adoro postar as minhas coisas, uso a rede social exatamente pra divulgar o meu trabalho. Adoro conversar com o público, adoro conversar com os fãs, adoro ter o feedback é importante pra nós artistas. Faço a minha arte, que é a razão da minha vida, e adoro os elogios, os comentários, me dão força na caminhada, né? Muitas pessoas se identificam comigo, que tem me tem como referência, como e profissional e homem negro.
Morando em Teresópolis por vezes consegue desligar geral da tecnologia e curtir mais a natureza?
Sou superligado nessa questão da tecnologia, de interagir nas redes sociais e tudo mais, mas amo a natureza também. Então, eu procuro sempre um tempo pra apreciar, pra ficar em silêncio, observando, contemplando, pisando no chão, na terra firme, meu jardim em Teresópolis. Ali recarrego a minha energia, a natureza aqui pra mim é uma inspiração pessoal e artística.
O que mais esse maranhense curte no Rio de Janeiro, qual a tua ligação com a cidade, o que há de melhor e o que pode melhorar na cidade maravilhosa?
O que eu mais curto no Rio de Janeiro é a natureza. E tenho muitos amigos cariocas, uma ligação forte com a cidade. Adoro morar no Rio, me considero já um carioca, moro mais tempo aqui do que eu morei em São Luís, minha cidade. E gosto do tempo também que eu morei em Brasília, né? Oque pode melhorar é termos uma cidade mais limpa, mais segura e zerarmos a violência, o que é um sonho. Seria fantástico a gente ter serviços de saúde, educação e transporte de melhor qualidade. E isso, claro se estende ao Brasil inteiro, né?
Como definiria esse momento?
Estou vivendo um momento especial da minha vida, em termos pessoais e artísticos por conta dessa fase de maturidade… Mesmo na pandemia, não deixei a peteca cair. Tenho ao longo da minha vida realizado os meus sonhos. Eu tenho vivido disso, sou ator, sou professor, tenho vivido nessa carreira com reconhecimento especial de seis anos pra cá. Através desse espetáculo Luiz Gama, uma Voz pela liberdade, há reconhecimento de público da crítica, do meio artístico. E agora da TV, esse convite é um coroamento de uma existência até aqui, né? A medalha Pedro Ernesto que eu ganhei, que eu recebi, a maior comenda da cidade, através da Câmara Municipal do Rio de Janeiro, é um reconhecimento desse menino, desse homem, desse artista, desse cidadão que faz da arte de interpretar uma das grandes razões da sua vida.
Fotos: Zacky Barreto e Divulgação