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Rio de Janeiro / Cotidiano

Por Claudia Mastrange

Exu abriu caminho e a Grande Rio conquistou o tão sonhado título de campeã do Carnaval carioca, após quase 30 anos no Grupo Especial. Depois de bater na trave com quatro vice-campeonatos, incluindo o de 2020, quando perdeu para a Viradouro no quesito de desempate, a escola de Caxias arrebatou o público e os jurados com o enredo ‘Fala, Majeté! Sete chaves de Exu’. Além de toda exuberância e perfeição da escola no desfile, a Rainha de Bateria Paolla Oliveira, que levantou a avenida ousadíssima com sua fantasia homenageando a pombagira, mostrou que é pé-quente. “Laroyê, Exu!!! Viva, Grande Rio Que felicidade fazer parte desse momento! Campeã do Carnaval 2022”, comemorou.

A verde e branco de Caxias foi vencedora também dos Estandartes de Ouro de melhor escola e de mais quatro categorias. No grupo Especial, alcançou quase a perfeição na avaliação dos jurados, terminando a leitura das notas com 269,9 pontos (e apenas um décimo perdido em samba-enredo). Mas a emoção não podia falta na apuração: a Beija Flor de Nilópolis chegou a ultrapassar a Grande Rio no início, mas terminou em segundo lugar. A São Clemente, que homenageou Paulo Gustavo, foi a última colocada e acabou rebaixada para a Série Ouro, enquanto Império Serrano, campeã da Série, volta ao Grupo Especial em 2023.

O resultado consagrou o belíssimo trabalho dos jovens carnavalescos Gabriel Haddad e Leonardo Bora, que diziam ainda no barracão, que levariam para a Avenida “uma visão exuzíaca do mundo”, citando o pesquisador Luiz Antônio Simas. E isso se traduziu em fantasias muito coloridas, alegorias gigantes, tons quentes nas alas, com variações de vermelho, fazendo a referência a Exu e suas manifestações.

“O enredo tem um conjunto de importâncias. A principal delas é desconstruir os estereótipos negativos que foram atribuídos devido a esse processo de racismo religioso à divindade Exu, que é uma divindade múltipla e viva. Mas foi incorporada por todos na Avenida”, disse Leonardo Bora, em entrevista.

Gabriel Haddad  lembrou que o tema também fez parte do desfile de 1993, quando a Grande Rio voltou ao Grupo Especial e nunca mais caiu. “Em 93, a Grande Rio cantou um ponto de Exu na Avenida. Parece que estava tudo escrito. Com enredo sobre Exu e contra a intolerância religiosa, a Grande Rio é campeã!”, analisou.

“Exu não é o diabo”

O zelador espiritual Danilo de Oxóssi explicou, em entrevista ao site G1, sobre a divindade presente nas religiões de matriz africana que faz ponte entre os humanos e orixás.”Exu não é diabo. A maioria das pessoas não sabe o que realmente é o Exu, não estudou o Exu”, explica . “É o orixá, é o guardião, é o primeiro que come na mesa dos orixás. O último é Oxalá, que é o rei de todos os orixás. E Exu come primeiro do que ele.”

“Exu é quem abre os caminhos da gente, é quem traz a prosperidade, quem traz a fartura para a sua casa. Todo mundo cultua Exu na África, pois é um guardião de todos os orixás. Ele é o guardião da gente”, explica.

Danilo resaltou a importância do enredo da Grande Rio para desmistificar os estereótipos negativos associados a Exu. “Depois que a Grande Rio passar pela Sapucaí, muita gente de casa e das arquibancadas vai ter uma outra visão”, previu.

É tudo que os carnavalescos vêm buscando em seus trabalho, priorizando a temática das religiões de matriz africana: combater a demonização da cultura afro.  “Engana-se quem associa Exu a coisas pesadas, sombrias e maléficas. Ao contrário, ele é uma entidade complexa, cheia de variações e a mais parecida com o homem. Está associado ao carnaval, às festas, às artes e até ao lixo. Não o lixo material, mas o lixo de valores, o resto da sociedade que ninguém quer, que está à margem”, diz Leonardo Bora.

A referência ao lixo veio, inclusive, durante o desfile, na representação do Lixão de Gramacho — o maior aterro sanitário da América Latina, desativado em 2012 — e da figura da catadora de lixo Estamira, que deu origem a um documentário. Houve representações dos profetas das ruas e artistas da “loucura”, como Bispo do Rosário, Jardelina e Stela do Patrocínio, que escrevia poesias em pedaços de papelão.

“Queremos não só combater o racismo religioso, mas também provocar a reflexão. Estamira era uma mulher com problemas mentais, que vivia no lixão, excluída, considerada inadequada para o modelo de sociedade que temos hoje. E que, em seus delírios, usava um telefone para conversar com a divindade: ‘Câmbio, Exu. Fala, Majeté’, dizia ela”, contou Bora.

Abre alas impactante e Rainha arrasadora

Durante o desfile, a comissão de frente já arrebatou os olhares, com a performance do ator Demerson D’alvaro , representando Exu e  escalando um imenso globo para chegar  ao “topo do mundo”. Lá, gargalhava e se deliciava com suas  oferendas. Demerson contou que se preparou dois anos para o trabalho, e que estudou muito para fazer bonito – e com muito respeito – na avenida.

Com suporte técnico do coreógrafo Hélio Bejani, Demerson fez pesquisa de campo dos axés e estudou sobre os balés afros da Bahia. Antes de entrar na avenida, lavou as mãos com uma água de ervas para garantir proteção e abrir os caminhos. E também rezou muito pelo título com a mãe, que é evangélica. “Rezei muito com a minha mãe que é evangélica, com a minha avó, com todo mundo, orei, orei, orei”, afirmou ele, que foi jogador de São Cristóvão, mas trocou a bola pelas passarelas e virou modelo.

Atualmente morador do bairro do Riachuelo, Demerson é cria de Honório Gurgel, onde tem um projeto social com um time de futebol infantil, o Marimba, apelido do pai de Demerson, que mantém contato com clubes do Rio.

A Rainha de bateria Paolla Oliveira reina absoluta na escola de Caxias desde 2009 e agora pode comemorar em grande estilo o primeiro título da agremiação. A mil por hora gravando a nova novela das sete da Globo, “Cara e Coragem”, em que viverá a protagonista, a dublê Pat, ela se dividia entre as gravações e os ensaios na quadra, a cada dia com um look diferente e ousado.

Na hora do desfile, não poderia ser diferente. A atriz deixou a Sapucaí de boca aberta com seu corpão e a ousada fantasia de Pombagira – a representação feminina de Exu. E foi profética na entrevista antes de pisar na Sapucaí. “É sempre emocionante, mas esse ano é grandioso pra todos nós. É um carnaval de vida, de esperança de mais uma vez de alegria de a gente poder estar juntos. Estou muito feliz por poder estar aqui mais uma vez. E falando do enredo, que Exu passe abrindo os caminhos pra Grande Rio”, disse a atriz.

Michelly X, estilista responsável pelo macacão de tule com aplicações estratégicas em vermelho, que dava a impressão de a atriz estar usando apenas um tapa-sexo, revelou ao site Pure People alguns dos “segredos” da confecção. “Não existe truque, mas uma boa modelagem e usar bons materiais. Fazemos tudo de forma muito cuidadosa e artesanal… Para esta roupa, em especial, usamos um tule próprio, resistente, e que foi tingido exatamente na cor da pele da Paolla. Outra coisa bem legal é que não usamos penas. Criamos e desenvolvemos um material que deu um efeito maravilhoso na fantasia”, contou.

Como parte da preparação, além de sambar muito nos ensaios, Paolla se consultou com Pai Danilo. Jogou búzios com o guia espiritual e abriu seus caminhos na Avenida. Segundo Danilo Gayer, a passagem de Paolla pela Sapucaí aconteceu como esperado.

“Ela todo ano me visita e eu jogo os búzios para ela. Fui eu quem revelei que ela é regida por Iemanjá desde o momento de seu nascimento e por isso tem aquela exuberância que mostra em seus trabalhos. Nesse ano abrimos os caminhos para ela na Avenida, pois ela tinha uma representação muito importante a desempenhar e apesar do resultado do jogo dela e de qualquer um ser particular, tudo saiu bem como se esperava”, contou Danilo ao jornal O Globo.

Pouco antes da apuração, Paolla avisou que não poderia comparecer ao tão esperado momento de abertura de envelopes com as notas pois estava gravando a novela. Mas firme e forte, na torcida. “Hoje é o grande dia!!! Daqui a pouco tem apuração das escolas de samba e eu torço muito que a gente possa gritar CAMPEÃ com a @GrandeRio. Tô trabalhando, gravando a novela, mas com o coração na quadra. Que Exu nos conceda a honra desse título.”, postou. E depois, só comemoração: ‘Um dos meus desejos de aniversário foi realizado!”, disse.

E assim foi: valeram o samba, os caminhos abertos e a força e beleza de um enredo e de um desfile que deram à Grande Rio o tão sonhado e esperado título.

Fotos: Gabriel Monteiro e Gustavo Domingues/Riotur