Atriz lança livro em homenagem à mãe, Nicette Bruno, e fala sobre seu amadurecimento após a perda dos pais
Por Claudia Mastrange
Emoção aflorada. Assim foi para Beth Goulart, escrever “Viver é uma arte: transformando a dor em palavras” (Letramento), sua estreia na literatura. O livro seria produzido por Beth e sua mãe, a atriz Nicette Bruno, que compartilhariam memórias, experiências , impressões de vida dessa família tão dedicada à arte. Mas 2020 chegou com a inesperada pandemia pela Covid-19, e o processo da obra, que havia começado há pouco tempo, foi interrompido pela brusca e dolorosa partida de Nicette Bruno, após 21 dias do diagnóstico.
“Choque. Dor. Morte. Pausa. Silêncio. Amor. Pausa. Silêncio. Saudade. Fé. Eternidade. Essência. Luz. Amor. Pausa. Silêncio. Paz. Deus. Amor. Deus. Amor. Deus.” Essas são algumas das palavras compartilhadas logo após as primeiras páginas da apresentação de Beth Goulart para a publicação. Após a perda do pai, Paulo Goulart, em 2014, mais uma vez o luto foi necessário, e o livro teve que esperar o tempo de recolhimento da filha que precisou seguir sozinha seu caminho de transformação.
O livro começaria com a morte de Paulo, depois de uma luta de quatro anos contra um câncer, e como foi vivenciada essa perda tão profunda por elas. Mas a força tão poderosa do Teatro ajudou as duas a transformarem essa dor em arte, quando Beth fez a adaptação do livro Perdas e ganhos, de Lya Luft, e dirigiu sua mãe neste espetáculo, que foi uma catarse pessoal e coletiva. “Foi uma forma de tirar mamãe daquele luto e transformar aquela tristeza em história, com as boas lembranças da vida que viveram, que vivemos com ele”, reflete Beth.
Agora, “Viver é uma arte: transformando a dor em palavras” chega às livrarias em junho, como uma homenagem à Nicette Bruno, com prefácio de Nélida Piñon e posfácio da atriz Fernanda Montenegro, amiga de uma vida inteira de Nicette e Paulo.
“Agora meu compromisso é comigo mesma, com meu propósito de vida, com minha fé, minha família, minha arte. Meus sentimentos e meu olhar para o mundo”, diz Beth, 61 anos, que conta, nessa entrevista à Mais Rio de Janeiro, como amadureceu com toda essa experiência e os planos para as artes e a vida.
Como é estrear como escritora com o livro “Viver é uma arte: transformando a dor em palavras”, que homenageia sua mãe, Nicette Bruno?
Foi uma experiência revolucionária. Foi uma maneira de eu me conhecer. Foi quase um chamamento. Depois da fase do luto pela perda da mamãe… A ideia inicial era usar o formato que eu e ela usávamos nas palestras que fazíamos pelo país. Falar de nossa filosofia de vida, nossa ligação com a arte e de como ela este presente em tudo na nossa vidas. Falar também da perda do meu pai e de como o teatro nos ajudou a superar esse momento. Sobre o poder de a arte curar feridas… E , de repente, tive que falar também da perda da minha mãe.
E como você prosseguiu nesse processo, carregando mais essa dor?
Olha, passou a ser um mergulho ainda mais profundo. Como diz (a escritora) Lya Luft: aprender a perder a pessoa amada e aprender a ganhar a si mesmo. Tive que aprender a buscar minha autonomia, num momento em que você se vê sozinha no mundo. É como um novo nascimento. Redireciona sua filosofia de vida, reescreve sua trajetória e canaliza de outra forma a sua voz. E todo esse processo virou livro, até para amplificar essa voz. Passou a ser um importante canal de comunicação porque havia todo um processo coletivo acontecendo (com a pandemia do coronavírus. Nicette morreu por complicações da covid-19) . Então as pessoas se identificavam com o que estava acontecendo porque várias pessoas, famílias estavam passando também por aquilo.
A obra passou a ter um sentido maior né?
Sim, talvez o livro seja o registro de uma época. Fiquei como uma espécie de interlocutora, que registrou um momento.
E como foi ter que registrar fundo e transmitir tudo isso em palavras, por meio do livro?
Olha, o curioso é que sinto a minha mãe sempre perto de mim, é minha referência. A morte dela tocou todo mundo. Porque ela era um ser iluminado, onde estivesse ela iluminava a todos. Aquele sorriso … Seu trabalho irradiava sabedoria, amor, luz… E com o meu pai também era assim. E o encontro deles dois potencializava tido isso. O amor que vinha dali, era por tudo, pela arte, pela família, pela humanidade. A grande herança que deixaram foi o amor.
E isso permanece e segue com você e família, né?
Sim, não tem como não reverenciar essa trajetória e essa herança. E isso está no livro e na minha vida. Eles são o maior exemplo de generosidade, talento, respeito pela arte e pelo público. E isso fica. É uma referência. E cabe a nós, agora levar esse legado adiante. E essa oportunidade me foi dada, seja no livro, seja ao falar ou atuar. É a nosso missão. Levar esse conteúdo às pessoas que escutam a nossa voz, e se identificam com a gente.
E o livro é uma ferramenta e também um documento excepcional.
Pois é. E com o livro, especificamente, tenho a oportunidade de falar com cada um dos leitores em particular, diretamente. Ele ali na solidão desse processo de leitura. Aquilo que sai do meu coração vai direto ao coração dos leitores. Não è a toa que sempre tive uma relação de abraçar o livro…E agora estou do outro lado, transmitindo conceitos pensamentos. Ele fez parte do meu processo de cura. A leitura nos traz conhecimento e com ela a gente cresce em todos os sentidos.
Como incentivar as crianças e adolescentes a lerem, nessa era digital em que a internet atrai demais essa turma?
Ler rotineiramente para uma criança é importante porque, dessa forma, ela vai associar a um momento de prazer, de afeto. O pai, a mãe, uma tia… parou um pouquinho para ler e contar uma história. Então associar o hábito a uma coisa boa é um ótimo caminho. E além disso, levar a uma exposição, ao teatro, cinema… Os hábitos de cultura precisam ser cultivados, até para que a criança conheça. Se esse estímulo é constante, a relação com a arte e a cultura acontece em outro nível. Ela passa a entender que a arte não é algo distante. A cultura está em nós, é a nossa identidade. É de onde viemos e o que somos. A origem é europeia, africana, burguesa..a partir daí se constroem os personagens, você se enxerga. E precisamos conhecer outras possibilidades de vida,de sociedade…
Na dinâmica de produção do “Viver é uma arte: transformando a dor em palavras” a ideia inicial era você pontuar os fatos e a Nicette comentar os temas na narrativa… Como ficou?
Sim, nas palestras que fazíamos era assim. Eu falava sobre um tema, como arte, família, etarismo etc… E ela interagia, comentando e o assunto fluía. A ideia era falar também sobre a perda do papai, em 2014. Foram quatro anos de luta contra o câncer. Eu falaria, por exemplo de quatro personagens, e mamãe entraria falando de outros quatro dela.A ideia era trançar tudo..os temas, as conversas. Mas ela morreu. Tivemos apenas três encontros efetivos para iniciar os registros. Tanto q eu só no início do livro temos a participação dela.
E, como tocou o projeto, após esse baque?
Precisei de um tempo. Você entra numa espécie de casulo, viver o luto, mergulhar fundo e, quando voltara à tona, retornar transformado para reviver. E escrever, nesse momento, foi muito bom. A escrita é terapêutica. Para você e também para o outro, que lê e se identifica.
E o que ficou de todo esse processo?
Foi mesmo um momento de cura da alma e de olhar para mim mesma. De pensar sua autonomia, ter crescimento e a relação com a vida. Renascimento. A Beth morre e volta de outra maneira. E a vida me deu a chance de falar sobre essa mudança e ajudar o outro, servir, ser útil à humanidade. Todos nós de alguma forma servimos ao nosso país. E agora vou servir também na escrita. É uma outra porta que se abriu para mim.
E já tem outro projeto literário na manga?
Já estou com um convite sim, mas ainda não posso contar. Fico muito feliz de dar continuidade a esse novo caminho. Que eu possa dar continuidade de transmitir coisas boas. Não quero falar só de luto (risos). Trabalho muito o sentimento da gratidão , temos tanta coisa em nós. Não somos apenas uma coisa só. A essência é uma, mas vamos nos transformando ao longo da vida. O aprendizado é constante.
Quando ainda estava saindo do luto, pelo falecimento do seu pai, você escreveu uma adaptação e encenou “Perdas e ganhos’, de Lya Luft, estrelado pela Nicette. Como foi esse momento?
Nossa, foi uma maneira de superar e trabalhar esse luto. Um momento íntimo da nossa família, mas que foi compartilhado com o publico de uma maneira muito bonita. E creio que essa empatia, essa identificação se dá pelo nosso compromisso com a verdade. Irmos a público falar sobre a perda de um grande amor, de vida, é muito forte. Foi uma catarse.
Você comentou que, com a morte de seus pais, que passou a ser ‘mãe de si mesma’…
Olha, o luto é uma fase necessária. É olhar para a dor e aceitar que é um crescimento. E lidar com o que está diferente agora. Se eu estou triste, não posso mais chorar no colo da minha mãe e nem ela me abraçar e me confortar. Hoje tenho que chorar sozinha. Então você mesmo precisa se amar, se acarinhar, se dar colo e também se divertir. Isso é ser mãe de si mesma. É como se ela ainda estivesse do seu lado. E na verdade está. Só que dentro de você, internamente, com tudo que te ensinou. Está em seu coração. Falo com meu coração e venho conversando muito com ele. E é importante falar e se ouvir. No processo terapêutico se ouvir para ter uma compreensão melhor. Você respira, reflete, fica menos impulsiva na hora de decidir. E eu sou muito impulsiva. É esse o processo que traz a maturidade
Um momento forte também de sua carreia foi a peça “Simplesmente eu, Clarice Lispector”, com a qual ganhou prêmios. Sempre admirou Clarice?
Clarice foi um momento lindo, uma experiência transformadora. Foi sensacional poder levar minha paixão para o palco. Há mulheres inspiradoras, que são uma grande referência para você na vida. E Clarice é assim. E ela tinha algo que fazia as pessoas terem medo dela, não alcançarem o que ela é. Eu queria mostrar, em cena, a mulher por trás da autora. É muito bom quando você consegue tirar do pedestal e conhecer mais a fundo aquela pessoa e tudo que ela pode te trazer. Como mulher, além da sua obra. Eu a olhei e ela também olhou para mim e aí ela me revela também. E as pessoas me viam em cada detalhe dela. E viam não só a Clarice, mas a Beth também. Foi uma reconstrução. Parece que ela dizia, ‘vai, confia’. Eu mergulhei em mim e achei Clarice. Ela foi única.
Pensa em mergulhar desse jeito na obra de outras autoras?
Sim, gostaria de viver Cora Coralina, que tem uma trajetória de vida muito linda e totalmente diferente. Na verdade gostaria de atuar na trilogia Clarice,que eu já fiz, Lya Luft , da qual fiz “Perdas e Ganhos” e Cora.
Com a perda de sua mãe e todas as emoções que afloraram na pandemia, como vê esse momento de dor da humanidade. Acha que as pessoas aprenderam algo?
Alguns sim . Mas acho que a pandemia mostrou o melhor e o pior do ser humano. Há um processo de seleção natural hoje em dia sabe. Em que é preciso botar a podridão para fora para depois haver uma limpeza, tirar o que é ruim. E isso esta aflorando. A pandemia veio e você acredita que só haverá solidariedade, empatia… mas não. Há muita violência, muita intolerância, muito egoísmo. E aí a gente vê quem é quem.
E como viver na frequência do bem, em meio a tudo isso?
Quem é do bem precisa reafirmar que é do bem. Agir, mostrar o que é, se expandir para não deixar espaço para o mal. Senão é ele que se espalha. A luz precisa ser acesa, o fósforo, a lanterna, e aí sim vai ocupando todo espaço e a escuridão desaparece. Há um enfrentamento, mas quem é do bem, mesmo atacado, precisa ficar firme. A gente tem que resistir. E isso não é fácil, nem vai ser vencido rápido. Vai levar tempo. Mas o que cabe a cada um de nós é fazer a nossa parte.
Muitos desistem e acham que só um não faz a diferença. É como jogar um papelzinho, que pode entupir o ralo…
Pois é. Mas o coletivo é construído a partir e cada um, das atitudes individuais. E temos sim, que sublinhar a importância do mover do bem. Que ressaltar o que muitos estão fazendo. O planeta pede socorro, e muitos estão reflorestando, limpando,reciclando lixo… Há atitudes positivas também. A Amazônia é um bem do planeta eo que se retira não pé só terra, madeira e ouro. É o nosso ar, o que há de mais precioso. O coletivo muda a humanidade.
Algum projeto para os palcos em 2023?
Uma ideia que tenho é atuar em “Perdas e Ganhos”, ou seja, voltar aos palcos com o espetáculo em que minha mãe atuou, mas agora comigo em cena. Tenho amadurecido esta ideia e talvez aconteça em 2023. Teria um significado enorme para mim.
Na telinha, você atuou na novela “Gênesis”, como a rainha Jaluzi , da Record TV. Tem personagem novo vindo por aí?
Tem sim, eu estou aguardando a definição para atuar em “Reis”, mais ainda não sei sobre a personagem, Vamos aguardar as emoções que virão nessa produção.
Recentemente o Cana Viva reprisou “Paraíso Tropical”, em que você viveu a Neli e a Globo, “O Clone’, em que você interpretou Lidiane. Você curte rever suas cenas e também as produções de varais épocas?
Adoro. Vejo muito. É a oportunidade de rever o trabalho dos colegas e não tenho problemas de me ver em cena não. Acho também uma homenagem a tantos grandes autores e suas obras, essas produções belíssimas que transcendem seu tempo. Veja Pantanal, que esta com algumas adaptações e segue sendo um sucesso. É maravilhoso!
Arriscaria dizer, entre tantas produções que você fez, algumas que mais te marcaram?
Olha, muitas. Mas gosto de “Baila Comigo”. “O Clone” é uma referência e esté sempre passando… Cito também “Jesus”, da Record TV, porque é importante lembrar as palavras de Jesus, neste mundo que vivemos. Olhar para Ele como ser humano também. São inúmeras “Uma Rosa com Amor”, “Éramos Seis”, foi minha primeira novela na extinta TV Tupi, junto com minha mãe. Só que eu era a filha da vizinha! (risos). “O Direito de Nascer” também é histórica.
É uma linda e bela trajetória….
Comecei na TV Cultura, fui para a Tupi, Globo, Manchete, agora na TV Record. Daquia a dois anos completo 50 anos de carreira.
Tantos anos e carreira e com essa jovialidade. Como se cuida?
Autoestima ,amor, alegria de viver é fundamental para a saúde. E o que você come faz diferença também. Não como carne há 30 anos, Não sou vegana. Como peixe, frango e muitas frutas e verduras e arroz integral. Isso ajuda a manter o peso. Faço caminhadas, Gosto muito. Faz bem para o meu corpo e a minha cabeça. Respirar ouvindo os pássaros, sentindo a natureza… Pisar a terra faz me sentir parte da natureza, é se integrar a ela. Beber água e agradecer pelo alimento. Nosso corpo é nosso templo, então precisamos cuidar bem dele. Pequenas atitudes fazem toda a diferença. Guimarães Rosa dizia: “Em tudo há a ponta de um milagre. E mesmo que nada aconteça, há um milagre que não estamos vendo”.
Fotos: Nana Moraes