Comédia musical “Seu Neyla” comemora 60 anos de carreira de Ney Latorraca, que esbanja vitalidade aos 78 anos
Por Claudia Mastrange
São 60 anos de carreira, uma trajetória admirável e um astral único, que merecem – e muito – serem festejados. E o melhor lugar para um grande ator celebrar a vida é o teatro. O ator Ney Latorraca acaba de estrear a comédia musical “Seu Neyla” e, graças à tecnologia, está no palco. Em um grande telão de led, de 5 metros de altura por 2,5 de largura, o ator aparece em cena no Teatro Riachuelo, no Rio de Janeiro. A peça fica em cartaz até 4 de setembro na Cidade Maravilhosa e depois estreia no FAAP, em São Paulo, em 9 de setembro.
Uma das novidades da produção é que, pela primeira vez no Brasil, um espetáculo acontecerá com a participação do protagonista, ao vivo, direto de sua residência, contracenando com os atores que estão no palco do teatro.”Seu Neyla” conta a história de quatro atores e um diretor, que ensaiam um espetáculo sobre a trajetória artística de um dos maiores ícones da cena brasileira.
“O que dá mais orgulho na minha carreira é saber que sou querido e respeitado pelo público e pelos grandes amigos”, declarou o artista, de 78 anos, em entrevista ao site GShow. E tem toda razão para se orgulhar de sua trajetória, com dezenas trabalhos em cinema teatro e TV. O nome do espetáculo é também uma referência a um divertido e constante comentário do ator, de que as pessoas volta e meia se referiam a ele como ‘seu Neyla”.
O talento artístico, pelo visto, estava no sangue. O pai era crooner e a mãe trabalhava no cassino da Urca. De família simples e humilde, o pequeno Ney, durante as noites, ficava sozinho, em silêncio, pois as pensões em que Dona Nena e Seu Alfredo Latorraca moravam não aceitavam crianças. Não podendo fazer barulho e nem brincar sua mãe falava: “Sonha meu filho. Porque é na mente que as coisas acontecem.” Desta maneira, desde a infância, o sonho, a arte e o teatro sempre estiveram presentes na trajetória de Latorraca.
E é um pouco desse universo que o público poderá ver no espetáculo “Seu Neyla”. Além de a tecnologia marcar o diferencial, a dramaturgia incorpora a realidade. Pandemia da Covid-19, lockdown e os espaços culturais são os primeiros a fechar. Tempos depois, os teatros reabrem e o homenageado não chega para o recomeço dos ensaios. Em um grande telão de led, digitalmente, em tempo real, direto de sua casa, no palco, chega o protagonista: Ney Latorraca.
“O mais importante como conteúdo desse trabalho é o mergulho na memória nacional e cultural que, principalmente, as novas gerações não têm. A gente brinca, no texto, que o Brasil sofre de Alzheimer cultural. Esse passear pela memória da formação do artista brasileiro, do profissional do teatro, cinema e televisão, tem um sabor de abrir baú”, declara o diretor José Possi Neto, que colaborou com Aloísio de Abreu, no texto de Heloísa Périssé.
A ideia do projeto partiu da diretora artística Aniela Jordan. “Tudo que o Ney conta fica interessante, instigante e muito divertido. Convidei o Possi para ser o diretor, que, no final, também participou da dramaturgia. Chamei a Heloísa para ser a autora. E o Aloísio para colaborar com o texto e estar no elenco”, conta a produtora.
“O segundo nome dele é gratidão”
O elenco de “Seu Neyla” é formado por Aloísio de Abreu – que interpreta o diretor “Stan”; – e mais quatro atores: Helga Nemetik, Thainá Gallo, Bruno Fraga e Pedro Henrique Lopes, além do próprio Ney. “Colaborei no texto, interpreto o Stan e personagens episódicos. O diretor é justamente quem faz a interface entre o Ney e o espetáculo. É criada uma dinâmica com a interação do diretor e os outros atores”, conta Aloísio de Abreu.
Diretor e ator se conhecem há meio século, mas pela primeira vez trabalham juntos. “Ney cursava, em 1969, o último ano da Escola de Arte Dramática, em São Paulo. Na época, eu fazia o terceiro ano da Escola de Comunicação e Artes da USP. Somos contemporâneos”, detalha José Possi. Neto
A autora Heloísa Périssé revela a emoção de escrever sobre seu ídolo. “O Ney é uma figura espetacular. Brinco que o segundo nome dele é gratidão. Sempre há uma história profunda com todas as pessoas que cruzam o caminho dele. A peça conta como os pais se conheceram, até o Ney se transformar nessa grande referência da nossa arte”.
Ney é um ator de todas as linguagens da interpretação: cinema, televisão e teatro. “Escrevi sobre a personalidade, o humor exagerado, mas que no fundo todo mundo acaba se identificando com aquelas tintas fortes, porque ele é um ator muito visceral, muito verdadeiro. Vivemos impregnados de Ney, nos tornamos um pouco Neyla. Ele é assim, como um bom perfume. Chega e toma conta”, define Heloísa.
Músicas que vão do romance ao humor
“São 13 números musicais, sendo uma das canções é inédita e composta por mim e pela Heloísa Périssé. No geral, as músicas vão do romance ao humor. São músicas antigas da carreira do Ney, com arranjos modernos”, conta o diretor musical Tony Lucchesi. “Meu Mundo Caiu”, em um medley com “Triste com Tesão”, de Pabllo Vittar. Todas as músicas ganham uma nova roupagem. Também haverá canções atuais e divertidas, como o arrocha “O Médico Chegou”. Esse será o universo musical de SEU NEYLA.
A coreografia e direção de movimento do espetáculo são de Ciça Simões, “a gente brinca que precisa de movimentos, coreografias e direção de movimento. Quando eu tenho o número completo, em que a música inteira é cantada, como no caso de “Lacinhos Cor de Rosa” ou “Sucesso Aqui Vou Eu”, aí a música é coreografada do início ao fim.
A cenógrafa Natália Lana detalha seu trabalho introduzindo a tecnologia no espetáculo: “No centro do palco, um grande telão, por onde o Ney vai aparecer de sua casa. Então, em um fundo preto, mesclamos elementos tradicionais do teatro, como as marcações no piso do palco e as cortinas. Realço a tecnologia usada no espetáculo, com um teto de led programável. O cenário da casa do Ney será um fundo de Chroma Key, onde podem ser feitas várias inserções gráficas. Trabalhamos com inovação virtual, aumentando as possibilidades e descobrindo vários desafios”.
A iluminação será basicamente definida pela busca por revelar e isolar momentos da vida do personagem, realismo e sonhos. Os atores devem manipular tripés, garras sanfonadas e outros elementos presentes na vida artística do Ney. “Em momentos de música teremos o descolamento total da realidade onde imagino traçar paralelos com a direção e cenografia para criar um ambiente de fantasia comum ao musical, com cores e efeitos” revela o iluminador Felício Mafra, mais conhecido como Russinho.
“O figurino tem como conceito o mundo teatral, com a sofisticação de uma alfaiataria desconstruída. A gente trabalha com sustentabilidade, entendendo esse universo do vestuário sendo transformado e contado de outra forma”, descreve a figurinista Karen Brusttolin.
Amigos, parentes e profissionais que marcaram a trajetória pessoal e carreira do homenageado ganham vida e figurino no espetáculo: Walmor Chagas, Tia Néia, Marília Pêra, Jandira Martini, Lauro César Muniz, Maria Della Costa, entre outros. “Sutileza, realidade e um pouco de surrealismo. As figuras importantes serão amplificadas como em um sonho e as outras figuras, mais próximas, minimizadas, mais intimistas. Tem muita veia teatral nesse figurino”, finaliza Karen.
Herança em forma de arte
Antonio Ney Natorraca nasceu em Santos, litoral sul paulista, no dia 27 de julho de 1944. Aos seis anos de idade, estreava na Rádio Record, numa participação com Maria Amélia e Zé Rubens, ídolos das radionovelas. Ao contrário da maioria das crianças e adolescentes que ficam na dúvida de qual caminho tomar profissionalmente, Ney sabia desde infância que sua vida seria trilhada nos palcos e nas telas.
Conhecido por personagens forte no humor, ele já brilhou em papeis dramáticos, mas para ele e outros atores, conseguir arrancar gargalhadas de um público também é uma arte. ”O humor é o mais nobre e também o mais difícil. Com o humor, você faz uma revolução em um país. É uma arma violenta. Brincando você diz coisas terríveis. E humor eu não sei se eu tenho, tá? É uma questão de talento. Ou a pessoa nasce com ele ou não”, declarou em entrevista.
Ney Latorraca é formado pela Escola Dramática da Univesidade de São Paulo e brilhou em textos de Shakeaspeare, Luigi Pirandello e outros clássicos da dramaturgia mundial, mas o grande público conhece mais a sua veia humorística. Afinal, quem não se lembra de o hilário Barbosa de “TV Pirata”? E da mordida do Vlad em Natasha na novela “Vamp”? E o que dizer de uma peça que ficou 11 anos em cartaz: “Irmã Vap” foi um sucesso estrondoso, ao lado de outro grande talento, Marco Nanini. ”Foi o maior sucesso do teatro brasileiro. Para você brilhar, na vida, no trabalho e no amor, você tem que ter outra estrela do teu lado”, avaliou.
Depois do fechamento dos cassinos, a família de Ney mudou-se para São Paulo e em 1957 para o Rio de Janeiro, cidade em que o ator reside até hoje e onde faz suas caminhadas pela Lagoa Rodrigo de Freitas. Ney iniciou o primeiro ano ginasial no Colégio São Fernando, pago por uma amiga de dona Nena. No colégio, a veia artística do ator não estava adormecida. Enquanto os alunos recitavam, Ney tinha um número fixo: dançava frevo, com figurino próprio, “inclusive a sombrinha”, disse.
No ano seguinte, decidiu voltar para Santos e prestar exame no Instituto de Educação Canadá. Com um grupo de amigos da escola, formou o conjunto Eldorado, que fazia animação de festas e bailes, já com a pretensão de seguir carreira musical, a exemplo dos pais. O conjunto Eldorado fez apresentações por quase dois anos.
Estreia em “Pluft”
Em 1964, resolveu se inscrever para participar da montagem teatral na escola. Foi sua estreia no palco, com a peça “Pluft. Na telinha, ingressou fazendo figuração na extinta TV Tupi. Participou do seriado “Alô Doçura” e da novela “Beto Rockfeller”, em 1969.
A estreia na TV Globo aconteceu em 1975, na novela “Escalada”, como Felipe. Um ano depois, fez grande sucesso como o Mederiquis de “Estúpido Cupido”. Ele encarnava um jovem rebelde dos anos 1960, que se vestia de preto e circulava em uma lambreta batizada pelo próprio ator de Brigite. Desde então, não parou mais, brilhando também em clássicos do teatro, como “Hair”, “A Mandrágora” e “Rei Lear”.
Atualmente no ar como Cornélio de “O Cravo e a Rosa”, atuou em produções como “Coração Alado”, “Avenida Paulista”, “Anarquistas Graças a Deus”, “Da Cor do Pecado”, Negócio Da China” e “Rabo de Saia”, como o seu Quequé, um caixeiro viajante que tinha três mulheres e fazia malabarismo para esconder uma da outra, entre muitas.
Ney também protagonizou uma das cenas mais comentadas do cinema brasileiro em “O beijo da Mulher Aranha”. Ele e Tarcisio Meira trocaram um beijo de língua durante a cena, o que gerou muita polêmica à época. Talento e ousadia que só merecem aplausos.
*Com informações da Batata Produções
Fotos: Markos Fortes