Miguel Falabella saboreia o sucesso do espetáculo “Marrom, o Musical”, em que assina texto e direção e que acaba de estrear em palco carioca
Por Claudia Mastrange
Que atire a primeira pedra quem já não soltou a voz com uma canção de Alcione. As músicas da Marrom, repletas de emoções rasgadas, idas e vindas do amor, saudades e tudo muito atrelada ao nosso jeito passional e aos elementos da nossa cultura, embalam a história dos brasileiros há mais de 50 anos. E os 75 anos da cantora, completados em 21 de novembro, merecem e muito serem celebrados de um modo especial, e no palco. E é o que tem acontecido desde a estreia do espetáculo “Marrom, o Musical”, superprodução de Jô Santana dirigida e escrita por Miguel Falabella com a história da artista maranhense, recém-estreada no Teatro da Cidade das Artes Bibi Ferreira, na Barra da Tijuca.
Em São Paulo, onde o espetáculo fez sua estreia nacional, em agosto, “Marrom o Musical” foi visto por mais de 25.000 mil pessoas. Agora chegou a vez da Cidade Maravilhosa receber esta produção. Em 2023 o espetáculo segue para São Luís, Belém do Pará, Salvador, Recife, Aracaju, Belo Horizonte e Vitoria e, no segundo semestre, atravessa o Atlântico e se apresentam no Porto e Lisboa.
E com quantas histórias se faz a vida de uma artista com 50 anos de carreira? Um simples ser humano pode contá-las ou seria preciso convocar uma entidade ao mesmo tempo sagrada e profana – quiçá um bando inteiro delas? Como falar de Alcione sem falar do Maranhão? Impossível! Por isso, o que se vê no palco, é uma história triste que acaba em festa, a história do Boi revisitada, entremeada com a história dessa maranhense ilustre, que lá atrás foi apenas uma menina no meio de nove irmãos, filha de Filipa e João Carlos.
Alcione pode ser muitas: menina, mulher, uma loba, filha amorosa, musicista apaixonada, perseguidora de sonhos. De onde ela veio, qualquer criança sabe, desde sempre, a história do Boi. Aliás, ela e o Boi são ambos filhos do Maranhão – terra tão amada e muito cantada pela Marrom. E de lá vieram 4 quatro artistas para integrar ao elenco e boa parte dos mais de 300 figurinos também foram bordadas em São Luís, na Cooperativa Cuxá, numa parceria sócio-cultural promovida pelo Instituto Humanitas360.
“Marrom, o Musical” traz 23 atores e atrizes em cena. E como uma grande produção acaba movimentando não só a cena mas também a economia da cidade. São mais de 250 empregos diretos e indiretos gerados neste período desde a concepção até o fim da temporada carioca que vai até 05 de fevereiro.
“Tem coisas nessa vida que a gente precisa viver… Eu já vivi muita coisa bonita em minha vida, como na Mangueira por exemplo. Você para mim aqui são um resumo de tudo minha família, minha vida minha carreira. Quero agradecer a todos e a Deus por vocês existirem,”disse a Marrom ao assistir o espetáculo em São Paulo.
Mergulho na cultura maranhense
Miguel Falabella nos conta sobre sua adesão ao projeto. “Quando Jô Santana me convidou para, a princípio, dirigir o espetáculo que encerraria sua trilogia do samba, sobre Alcione, uma das maiores intérpretes da música brasileira, não só aceitei encantado, como percebi que, para encenar um espetáculo que me satisfizesse plenamente como realizador, eu precisaria também assumir a dramaturgia. As minhas expectativas são altas e tenho razões para que sejam: Alcione é minha amiga, uma mulher de atitudes e coragem memoráveis e contar sua vida é mergulhar nas raízes de uma das mais ricas culturas populares do Brasil, a maranhense.
E segue “Jô teve a ideia de me chamar e Alcione obviamente concordou e ficou feliz com a escolha. E eu obviamente abracei imediatamente a ideia com muita alegria e porque eu sabia que era uma coisa que eu desejava muito fazer. E que eu faria com com todo o meu coração”, conta.
Falabella revela que não falou diretamente com Alcione durante a concepção do espetáculo. “Na verdade não conversamos nunca. Eu pesquisei muito, conheço Alcione né, frequento já estive com ela inúmeras vezes. Enfim…. Então fiz uma pesquisa e sabia pra onde eu queria ir. Eu sabia que pra falar da Alcione eu precisava falar também do Maranhão. Porque foi dessa maneira que eu a conheci. Sempre muito uma embaixadora da sua terra e abrindo a sua casa, com o abraço do Maranhão.E sempre foi muito encantador esse lado, esse aspecto dela. Então eu sabia que eu precisava colocá-lo no espetáculo”
E qual o diferencial dessa grandiosa produção que fala de uma artista mulher e negra em um país onde o preconceito ainda tem cores fortes? “Bom, eu acho que o simples fato de ser um elenco negro já é uma afirmação. Né? Enquanto espetáculo. Ele trata da história de Pai Francisco e Catirina, que são personagens icônicos do boi bumbá e que discutem, à sua maneira, essa relação. São escravizados. Então fogem porque ela tem desejo de comer a língua do boi. Acho que o espetáculo tem isso, tem esse coração negro, pulsante e com ritmo,afinação, voz e com a elegância. Estou muito honrado de fazer esse espetáculo”.
A respeito do desafio de levar para o palco uma produção que traduza a magnitude da carreira e da história pessoal da Marrom, Falabella declara que não teve grandes dificuldades. “Acho que a Alcione basicamente, para o grande público, é a sua obra, mistura-se com a sua obra. Então é a trilha sonora da vida de todos nós, de gerações e gerações. E eu sabia exatamente sobre o que eu queria falar. E esse olhar poético de uma mulher que professa trabalhar com alegria sempre”, conta ele, ressaltando que era esse espírito que queria levar para a obra. “Eu queria que fosse uma celebração, que as pessoas saíssem felizes do teatro. E é assim que eu vejo o espetáculo. Vejo o público sair feliz do teatro. Alcione é uma mulher muito franca, muito direta, uma mulher que tem opinião, que… Ah, é muito interessante. Então não tive dificuldade não”.
O resultado tem sido muitos aplausos e o teatro lotado de um público que se delicia com apresentações belíssimas das intérpretes das várias fases de vida de Alcione. “Eu acho que todo espetáculo que chega ao coração do público é fundamental para a cultura brasileira, no sentido de levantar nossa autoestima enquanto povo. Então, sempre que nós testemunhamos o talento e a chama dos artistas brasileiros nós nos emocionamos e nos reconectamos com a nossa terra. Acho que é isso…. Ela é uma artista brasileira, uma artista com uma voz imensa e um coração ainda maior”, conclui Falabella.
O desafio de viver a Marrom
A atriz Letícia Soares, que já brilhou como protagonista de “A Cor Púrpura”, encarna Alcione no espetáculo e também a divertida personagem Vizinha. “Viver Alcione nos palcos é uma das maiores experiências da minha vida porque eu acho muito importante a gente homenagear aqueles artistas que abriram o caminho pra que a gente pudesse exercer a nossa profissão com dignidade, com inteireza sabe? E Alcione é uma dessas pessoas e que fez tudo que fez, sem muito cálculo, apesar da determinação.. Então é uma honra muito grande ver Alcione diariamente no palco. E o maior desafio de todos: viver uma estrela da grandeza dela. E o fato de entender que ela é inimitável.
A preparação foi muito intensa. Dois meses de ensaio e a observação como base. “Meu caminho foi ver inúmeros vídeos da Alcione, me apropriar de alguns trejeitos pra dar leitura pro público também, né. Foi um trabalho assim extenso de ver vídeos, entrevistas, eh conhecer e me aprofundar mais sobre a história dela. E costumo dizer que a Alcione é um tipo de artista que você não precisa nem se dar o trabalho de acompanhar, porque ela já faz parte da vida de todos os brasileiros.Entra na casa do rico, do pobre, do branco, do preto, ela fala do amor, ela fala do desamor, ela fala da da das despedidas, elas ela fala dos encontros. Então, Alcione ela não, ela, ela é quase uma onipresença na casa dos brasileiros.
E qual a importância de homenagear uma artista como Alcione, num país em que a memória da cultura volta e meia é deixada para segundo plano? “ Nosso pais é um país sem memória e que não pensa duas vezes em apagar a importância da presença, especialmente dos artistas pretos, intelectuais… E quando o assunto são mulheres essa coisa se aprofunda muito mais. Eh então eu acho que mais do que falar da memória da Alcione é homenageá-la em vida, mostrando que antes de qualquer coisa a gente não vai deixar a memória dela morrer. Antes que isso seja cogitado, a gente já tá se antecipando e dizendo, olha, essa grande artista está e estará sempre presente na casa de todos os brasileiros. Então, é um resgate e o fortalecimento da memória e da força que é Alcione. Enquanto artista, enquanto mulher, preta num país como o nosso”.
“Alcione é o Brasil”
Uma trilogia de respeito. Depois de idealizar e produzir espetáculos sobre Cartola e Dona Ivone Lara, Jô Santana fecha a trilogia de ícones do samba com o espetáculo “Marrom, o Musical”, que celebra aos 50 anos de carreira da cantora. Confira nosso bate-papo com ele:
Como foi a imersão no Maranhão, para montar o elenco e inclusive escolher os atores para o musical?
No começo deste ano, graças a uma parceria incrível com o Governo do Maranhão, a Equatorial Energia e o Instituto Humanitas360, nós tivemos a oportunidade de promover três cursos em São Luís do Maranhão. Já tínhamos estado lá, mesmo durante a pandemia, para realizar pesquisas e conversar com pessoas. Mas essa etapa do início de 2022 foi fundamental.
Fizemos uma oficina de teatro com mulheres em privação de liberdade do Complexo Penitenciário das Pedrinhas, que compõem a Cooperativa Cuxá. Nossa amiga querida, Patricia Villela Marino, do Humanitas360, nos apresentou este projeto no começo do desenvolvimento de “Marrom, o Musical” e desse contato inicial surgiram tanto a ideia dessa oficina, que foi algo transformador na vida de todos que participamos, e também da parceria, que resultou em algo que está no palco.
O figurino né?
Sim Parte do figurino do espetáculo foi finalizado pelas mãos dessas mulheres da Cuxá, no Maranhão.Tivemos a oportunidade de ter contato com produtores e fazedores de cultura do Maranhão, numa oficina de Produção Cultural que ministramos por lá também.
E por fim, teve o Curso de Teatro Musical, com Miguel Falabella, com artistas maranhenses. Durante esse curso, estivemos observando bastante o empenho e a participação de todos e todas, porque queríamos escolher quatro artistas dali, que fazem parte da realidade do Maranhão, para compor o elenco do musical. E foi assim que tivemos a grande oportunidade de escolher Anastácia Lia, Millena Mendonça, Jefferson Gomes e Fernando Leite para estar conosco nessa empreitada. Escolha que se revelou acertadíssima, pois além do talento e dedicação, os quatro são artistas com profundas relações com a cultura do estado-natal de Alcione.
Por que decidiu encerrar sua trilogia com Alcione?
O projeto da Trilogia do Samba não foi pensado, a princípio como uma trilogia. Lá no começo, eu só sabia que precisava mudar um pouco o foco e passar a contar a história do nosso povo preto. Durante a temporada do musical “Cartola – O Mundo é um Moinho”, tínhamos apresentações de artistas convidados. E numa das muitas sessões, Alcione era a convidada. Ela estava aguardando para entrar em cena. Eu estava por perto e me ocorreu na hora a ideia. O projeto da homenagem a Dona Ivone Lara já estava sendo gestado. Então me ajoelhei ao lado da cadeira onde a Marrom estava sentada e lhe perguntei: “E se fizermos um musical pra contar sua história e de sua família, como esse que estamos fazendo de Cartola, Alcione?”. Ela ficou de pensar e me dar uma resposta. Então foi assim, naquele momento, nos bastidores, que a ideia da trilogia se firmou.
O que primeiro veio à sua cabeça na concepção do espetáculo?
Como tínhamos este amigo em comum, que é Miguel Falabella, e através dele, tive a oportunidade de conversar calmamente com Alcione e sua irmã, Solange Nazareth, conhecer um pouco da história de vida da família como um todo, o que pensei a princípio é que essa história precisava ser levada aos palcos. Não só a obra musical de Alcione, falar da importância que essa artista tem para a cultura do Brasil, mas também como sua história de vida pode ser algo importante pra nós, porque se parece em diversos momentos com as histórias de muitos de nós. Desde o início, era muito forte pra mim essa percepção de que Alcione é o Brasil, representa a história do nosso país, principalmente do povo preto, que é a maioria da nossa população, do povo nordestino, que algumas décadas atrás, foi se espalhando pelo país em processos migratórios diversos. Daí Miguel, que é quem criou a dramaturgia, logo de início teve a ideia de falar das tradições do Maranhão, em especial do Boi do Maranhão, ao qual a família de Alcione sempre foi muito ligada também.
Você se surpreendeu com o resultado no palco?
Apesar de estar junto durante todo o processo, sim, eu posso me dizer que me surpreendi com o resultado e ainda me surpreendo em algumas vezes que fico na plateia. Porque um espetáculo de teatro não é só que está escrito, não é só a mão de quem conduz (dirige), não é só a história que é contada e nem é só a soma dos talentos que se entregam de corpo e alma no palco. É a soma de tudo isso. É muita gente! Então tem dias em que um número brilha mais que o outro, de uma forma que não tínhamos notado ainda. Tem dias que a emoção de alguns dos nossos extraordinários artistas está à flor da pele e isso casado com o repertório do show (que é o repertório de Alcione!) e toda aquela atmosfera onírica criada pela encenação, mexe com a gente de um jeito diferente. Então sim, é sempre uma boa surpresa ver e rever este espetáculo. O dia em que Alcione estava na plateia junto com a família então… Nossa! Emoção pura!
Fotos: Caio Galucci, TV Globo e Reprodução