Por Claudia Mastrange
Esse baiano, pensa, elabora, casa tudo com sons e harmonias e transforma suas reflexões em música. Assim é Caetano Veloso, em seus 79 anos e mais de 50 anos de carreira e 50 lançamentos em sua discografia. E com uma pandemia no meio do caminho certamente a inigualável trilha sonora do artista não passaria impune. Assim, após nove anos, Caetano lança pela Sony o álbum de inéditas Meu Coco, produzido durante seu isolamento no Rio. O trabalho solo de estúdio anterior foi Abraçaço (2012), gravado pela Universal.
“Muitas vezes sinto que já fiz canções demais. Falta de rigor?, negligência crítica? Deve ser. Mas acontece que desde a infância amo as canções populares inclusive por sua fácil proliferação. Quem gosta de canções gosta de quantidade. Do rádio da meninice, passando pela TV Record e a MTV dos começos, até o TVZ no canal Multishow de agora, encanta-me a multiplicidade de pequenas peças musicais cantadas, mesmo se elas surgem a um tempo redundantes e caóticas”, conta o cantor e compositor no material de divulgação enviado à imprensa.
Mas é claro que as canções nunca são demais Caetano. Nem para nós , nem para esse artista singular, sempre a observar o cotidiano, as mudanças e mazelas sociais, as inovações da tecnologia. Tudo é pauta e tudo pode virar um novo som. “No final de 2019, tive um desejo intenso de gravar coisas novas e minhas. Tudo partiu de uma batida no violão que me pareceu esboçar algo que (se eu realizasse como sonhava) soaria original a qualquer ouvido em qualquer lugar do mundo. Meu Coco, a canção, nasceu disso e, trazendo sobre o esboço rítmico uma melodia em que se história a escolha de nomes para mulheres brasileiras, cortava uma batida de samba em células simplificadas e duras.
O artista imaginou dar um formato final a esse som inicial da , -os com a força criativa da dança. “Eu tinha a certeza de que a batida, seu som e sua função só se formatariam definitivamente se dançarinos do Balé Folclórico da Bahia criassem gestos sobre o que estava esboçado no violão. Com isso eu descobriria o timbre e o resto”, conta ele. “Mas chegou 2020, o coronavírus ganhou nome de Covid-19 e eu fiquei preso no Rio, adiando a ida à Bahia para falar com os dançarinos. Esperaria alguns meses? “, recorda-se.
A questão é que os meses de isolamento transformaram-se em mais de um ano. Caetano então decidiu começar a gravar no estúdio caseiro. Conta que, ao lado do produtor Lucas Nunes iniciou os trabalhos pro “Meu Coco” e conta detalhes sobre as composições. “Enzo Gabriel é o nome mais escolhido para registrar recém-nascidos brasileiros nos anos 2018 e 2019. À medida que vou fazendo novas canções, me prometo pesquisar a razão de, na minha geração e mesmo antes dela, nomes ingleses de presidentes americanos terem sido escolhidos por gente simples e pouco letrada, principalmente preta, para batizar seus filhos: Jefferson, Jackson, Washington – assim como Wellington, William, Hudson – eram os nomes preferidos dos pais negros e pobres brasileiros”, diz.
Inquieto, como acriança que tudo quer saber o porquê, Caetano busca respostas para essas e tantas outras pautas. “Ainda não fiz nenhum movimento nesse sentido, mas ter esse disco pronto e estar empenhado em lançá-lo me leva a certificar-me de que farei a pesquisa, como se fosse um sociólogo, assim como ter feito Anjos Tronchos, canção reflexiva que trata da onda tecnológica que nos deu laptops, smartphones e a internet, me faz prometer-me ler mais sobre o assunto”, conta
Anjos Tronchos merece um olhar mais atento. Caetano comentou, via redes sociais que é a canção que terminou ficando extremamente densa. Ele lembra que hoje o mundo vive mergulhado “num bar de algoritmos”, possibilidades diversas de redes sociais e aparato tecnológicos que avançam muito depressa. “Tem muitas canções que tiveram resultados políticos, na formação da cabeça de gerações, de áreas da sociedade, e que não foram feita por uma pessoa que conhecesse teoricamente a complexidade daquele assunto. Eu terminei pensando: ‘Deu para fazer uma canção que pode ser como uma dessas”, avaliou.
A música ganhou um clipe emblemático e fala sobre tecnologia e faz crítica a “líderes palhaços”, o que foi suficiente para alcançar grande repercussão nas redes sociais. “Palhaços líderes brotaram macabros/ No império e nos seus vastos quintais/ Ao que revêm impérios já milenares/ Munidos de controles totais”, diz um trecho.
“Como a canção fala de muitas coisas horrendas, é bonito falar de coisas boas. Primeiro falei do sonho de um poeta de fazer poesia visual mais complexa, eu me referia a Augusto de Campos principalmente, e no final, me veio a Billie Eilish. Terminou como uma frase enigmática, mas muito simples”, escreveu o cantor, em uma publicação no Twitter.
“É o pior que poderíamos imaginar”
Também nessa pegada, o cantor lançou, em 28 de outubro, o vídeo da canção Não Vou Deixar. Minimalista, o audiovisual traz a poderosa mensagem da música mais diretamente política de Meu Coco. O vídeo da canção – uma das favoritas de Caetano do novo álbum- foca apenas nas expressões faciais e movimentos do artista.
“Com célula de base de rap criada no piano por Lucas e letra de rejeição da opressão política escrita em tom de conversa amorosa”, descreve a música. Não vou deixar, não vou deixar, não vou deixar você esculachar com a nossa história. É muito amor, é muita luta, é muito gozo, é muita dor. E muita glória”, diz a letra. No dia seguinte ao lançamento do clipe, o artista sublinhou: Fui achando ela a minha faixa preferida do álbum. Ainda acho”, postou no Twitter
Não coincidentemente, o vídeo da canção chega exatamente três anos após o resultado das últimas eleições presidenciais: “O presidente que nós temos é o pior que poderíamos imaginar. Mas ele é parte da câimbra que nosso corpo histórico-social sofre. ´Não vou deixar´ é o que diz a voz de pessoas como Fernanda Montenegro”, finaliza.
Além das questões políticas, outros temas, como os ligados à negritude e sua representatividade, também passam pela olhar criativo e reflexivo do baiano, como em Pardo, que ganhou arranjo do baiano Letieres Leite, falecido no último dia baiano, sobre a percussão carioca de Marcelo Costa. “O título já sugere observação do uso das palavras na discussão de hoje da questão racial”, diz o artista.
A família, claro, também tem espaço particular e infinito no novo trabalho. O neto Benjamin ganhou uma canção do vovô coruja. Autoacalanto é retrato de meu neto, que agora tem um ano de idade. Tom, o pai dele, toca violão comigo na faixa, conta Caetano. A Tom, ele também agradece a parceria com Lucas. “Devo Lucas a meu filho Tom: os dois fazem parte da banda Dônica; devo a atenção a novas perspectivas críticas a meu filho Zeca; devo a intensa beleza da faixa GilGal a meu filho Moreno: ele fez a batida de candomblé para eu pôr melodia e letra que já se esboçava, mas que só ganhou forma sobre a percussão. E eu a canto com a extraordinariamente talentosa Dora Morelenbaum.
Com tantos temas, afetos, reflexões, o novo trabalho desse ícone da MPB segue rasgando seu sentimento em palavras e pautas que unem reflexão e música, crítica e beleza, suavidade e e atitude. ”Este é um disco de quantidade e intensidade”, sentencia Caetano. Alguém duvida?
Ícone rebelde da MPB
Caetano Emanuel Vianna Telles Velloso nasceu no dia 7 de agosto de 1942 em Santo Amaro da Purificação, no Recôncavo Baiano. Era quinto filho dos sete do casal José Telles Velloso (funcionário público, empregado dos Correios e Telégrafos) e Claudionor Vianna Telles Velloso (dona de casa).
Desde menino, já demonstrava ter enorme gosto para a música e para as artes visuais. Quando ele tinha 14 anos a família se mudou para o Rio de Janeiro onde o então menino começou a desenvolver ainda mais as suas habilidades.
Em 1960 a família Veloso foi viver em Salvador e, lá, Caetano, foi cursar faculdade de Filosofia. Mas ganhou também um violão e passou a cantar em bares com a irmã Maria Bethânia. Também escreveu uma série de críticas de cinema entre 1960 e 1962 para o Diário de Notícias.
Voltou para o Rio de Janeiro em 1965, acompanhando a irmã, convidada para participar do show Opinião. Em 1967, ao lado de Gal Costa, Caetano grava Domingo, seu primeiro disco. A música Alegria, Alegria é classificada em quarto lugar no III Festival de MPB da TV Record.
Tropicalismo
Em 1967, Caetano Veloso se apresentou no III Festival da Música Popular Brasileira, da TV Record, quando cantou “Alegria, Alegria”, acompanhado pela banda de rock os Beat Boys, incomodando os conservadores. Conquistou o 4º lugar, no que marcou o inicio do Tropicalismo , movimento que unia ritmos regionais e guitarras elétricas que transformou a MPB.
Em 1968, lança “Tropicália ou Panis et Circensis”, disco-manifesto do Tropicalismo. Em setembro, se apresenta no Teatro da Universidade Católica (Tuca), em São Paulo, cantando junto com os Mutantes, a música É Proibido Proibir, onde recebe uma enxurrada de vaias, bem mais que aplausos. Mais tarde, a música se tornou um hino contra a censura e os anos de chumbo, um verdadeiro retrato de uma época negra da nossa história.
A geração que reuniu talentos como Rita Lee, Gilberto Gil, Tom Zé, Gal Costa, Rogério Duprat entre tantos outros nomes, ficou marcada como sendo contestadora, com vontade de promover a mudança.
Exílio
Em 1969, Caetano Veloso é preso pela ditadura militar, acusado de ter desrespeitado o Hino Nacional e a Bandeira. Em 1969, parte para o exílio, em Londres. Nesse período, grava: Caetano Veloso (1969) e London, London (1971). Em 1971, volta ao Brasil e no ano seguinte faz show em Salvador, ao lado de Chico Buarque. Em 1973 lançou Araçá Azul e produziu shows para Bethânia, Gal, entre outros.
Em 1976, Caetano Veloso, Gal, Gil e Bethânia formam o grupo Doces Bárbaros gravam Os Mais Doces dos Bárbaros e excursionam por todo o Brasil. De lá para cá, são inúmeras composições e muitos e reflexivos os caminhos de Caetano Veloso. Sempre antenado com seu tempo, na interseção de som, palavra, contestação, crítica, alegria, poesia e tudo o mais que um poeta da canção abraça e transforma em letra e música. Que venham muitas mais.
Fotos: Fernando Young